Na cidade de Jacobina tem: A Marujada
SUZANA ALICE MARCELINO CARDOSO
Bahia, Brasil
<<A1erta, alerta quem dorme!
Saia moça. Na janela,
Oi venha ver a. triste vida
Que 0 pobre maruja leva!»
(E o canto que, há. mais de duzentos
anos, entoam <<matinas>>, nas festas de São Benedito e Santo Antonio, os marujos de Jacobina (1), despertando a população.)
1. Auto popular, a Marujada é documentada ao Norte- -Nordeste do Brasil, quer sob esse nome, quer sob as designagação e chegança de marujos, chegança, de mouros, chegança simplesmente, barca, nau Catarine ta e fandango, revestindo-se,
conforme a região, de características especificas. As peculiaridades que distinguem as apresentações de uma para outra área dizem respeito não são a diversidade de textos recitados ou cantados, mas também a própria forma de apresentação e a composição do grupo, em alguns lugares constituído de mulheres, como indica CAMARA CASCUDO (2) para Marujada do Para, em outros, exclusivamente de homens, como é esta da qual nos ocupamos.
2. A Marujada de Jacobina sai sistemática e unicamente nas festas de Santo Antonio, padroeiro da cidade, dia 13 de Junho, e de São Benedito, santo muito festejado no município, ao qual são feitas e pagas muitas promessas, principalmente no seu dia, festa móvel no calendário cristão, realizada na segunda-feira imediata ao domingo de Pentecostes. Saem nessas duas festas porque estas eram, segundo a explicação da nossa informante, dona Antonia Francisca de Paula (3), as <<devog6es dos negros>>. -
A apresentação segue um ritual desenvolvido em três tempos:
1° <<Fazem a matina», isto é, desfilam muito cedo, pela madrugada, cantando 0 <<Alerta, alerta quem dorme>>. Saem
da Missão, bairro antigo da cidade, onde se situa a primeira igreja, construída no inicio da catequese dos índios, em 1626, e chegam até a porta da Igreja Matriz. Ai dançam, soltam foguetes e fazem a primeira homenagem- ao santo do dia, para logo a seguir retornar ao local da concentração.
2.° Retorno a Igreja Matriz, para a missa solene da festa,
sempre por volta das nove ou dez horas. i
3.” A terceira apresentação se faz a tarde e consiste em
acompanhar a. procissão em louvor do santo.
Cumprido o ritual, e apos ultima das três saídas,
tornou-se habito a Marujada ser recebida pelas famílias. Assim,
terminados os compromissos religiosos, os marujos percorrem
a cidade, visitando as casas de família, onde dançam, cantam,
recebem a homenagem da população e são obsequiados com
doces e bebidas. Depois de uma jornada tão intensa, recolhem-se
e ficam no aguardo da próxima festa ou do próximo ano.
3. A estrutura organizacional da Marujada é fixa, definida
através de postos hierárquicos assim identificados: um almirante, que é o mestre,
dois generais, dois capitães, um contra--mestre, calafates geralmente em número de seis,
e marujos em número variável. Dispõem-se na seguinte ordem, quando
da composição do grupo para a apresentação: a frente o mestre
com a sua batuta (v. figura 1), ladeado pelos generais, que
ostentam espadas, e entre aquele e estes os calafates: seguem-se
os marujos e por fim 0 contra-mestre (v. figura 2), tendo a
seu lado os capitães. A frente de todos e <<puxando>> —como
dizem— a Marujada esta o violeiro. ‘
Os marujos, termo que identifica genericamente os participantes do grupo,
.independente da sua <<patente>>, são pessoas
de diferentes idades, que vivem a sua própria vida, trabalhando
em profissões diversas, e se refinem a cada ano, conservando-se
na sua maioria, mas sempre havendo defecgoes e novas participações,
para os ensaios que recomeçam sempre em Janeiro.
Os calafates são meninos cuja idade não ultrapassa os quinze
anos. Os oficiais, isto é, generais, capitães e contra-mestre
são escolhidos livremente. O almirante, porém, não é cargo
que se ocupe nem por idade nem por livre escolha, mas por
direito adquirido em virtude de pertencer a uma das duas
famílias —os Labatut e os Caranguejo —, as duas grandes
<<dinastias>> que sustentam a Marujada. Os componentes da
Marujada foram, desde a origem, pessoas negras, como o são
os que constituem as duas famílias em torno das quais se
alternam a sua direção e o seu comando, a família Labatut
e a família Caranguejo. Com 0 passar dos tempos, pessoas
de outras etnias começaram, ainda que parcimoniosamente, a
integrar 0 grupo que desfila, representando-se principalmente
na categoria dos calafates.
4. Os instrumentos usados são dois pandeiros, uma viola,
pandeirinhos tocados pelos calafates e castanholas pelos
marujos. Os oficiais, generais e capitães, usam espadas, 0
mestre e 0 contra-mestre tem batuta. Os textos recitados
são da competência dos oficiais que dão ordens; aos marujos
cabe responder a estas, cantando.
Os textos recitados se constituem, em ordens de variado
tipo. Ordem de saída, dada. pelo mestre:
<<Sendo Santo Antonio (‘)
Tesouro de alta categoria,
Hoje se acha. em cadeia. (5)
Anunciando a Maria».
A esta se seguem outras ordens, emitidas pelo contra-
-mestre, que declara:
<<Sou um contra-mestre pimpão,
Trago granadas no peito
E jóias de ouro na. mic».
e pelo capitão que acrescenta:
<<Contra.-mestre e calafates,
Tiro todos aqui de parte
Como capitão diretor,
Que a. voz va de canto a canto
A fim de louvarmos o glorioso santo».
d) cantos de despedida, como:
<<Oi já nos déi o coração
E os olhos de chorar,
Quando 0 contra-mestre manda
Pra ribeira embarcar!»
A temática dos cantos envolve, de um lado, insistentes
referências a vida do mar, at marinhagem; de outro, alude as
terras do antigo colonizador, ao mencionar Portugal, Porto,
Lisboa e a cidade de Vaganga, muito provavelmente Bragança.
5. A vestimenta nem sempre foi a mesma. Nos começos
era um uniforme branco completo, isto é, calça e palitó, todo
enfeitado de fita com lagos apregados. Na cabeça, usavam
uma carapuça que se mantinha erguida, armada, acabando
em forma. de funil, enfeitada de espelhos, fitas e ramos de
folheta, vestimenta que perdurou até 1931. A partir de então
os marujos passaram a usar roupa de marinheiro, branca com
azul marinho na festa de São Benedito e branca com vermelho
na festa de Santo Antonio.
6. A Marujada de Jacobina, como declarou nossa informantes,
<<tem seguramente seus duzentos e muitos anos e os
seus fundadores vieram de outras terras», argumentando com a
citação de um trecho dos muitos cantos:
<<Meu padrinho São Benedito, espelho de Portugal»,
para concluir ela mesma: <<Se fosse daqui, por que ia falar
‘espelho de Portugal’?>>. Teria, na sua afirmação, origem, por-
tanto, no séc. XVIII, no que coincide com a datação proposta
por SiLvI0 ROMERO (’) para manifestação congênere, documentada no rio Grande do Norte. <
O posto mais importante —o de mestre, ocupado pelo
a1mirante- esteve sempre na mão de duas famílias -—0s
Labatut e os Caranguejo —, que o mantém numa sucessor
dinástica, alternando-se ou não, mas sempre assegurando-lhes,
e nunca transferindo a outras famílias, a primazia e o direito
de conduzir a Marujada. Dos nomes mais antigos, ligados a
histéria dos marujos, tem-se memória de João da Mata,
Benedito Caranguejo, José Labatut, Antonio dos Capins, além
do Caranguejo Velho, 0 Benedito Caranguejo, do qual era
sobrinho e afilhado João Caranguejo Novo, o João Vicente
de Deus. As famílias Labatut e Caranguejo seguiam as
determinações do velho Benedito Caranguejo e depois de João
Caranguejo e de seu. sucessor Manoel Vicente de Deus. Dos
primeiros que trouxeram a representação para a cidade, a
memória popular não guarda os nomes, nem conhece a historia.
Sabe-se, como declarou nossa informante, que vieram de fora.
Durante muito tempo esteve na mão dos Caranguejo 0
comando da Marujada. Com a morte de Manoel Teodoro
interrompe-se a cadeia sucessória dessa família e um autêntico
Labatut, Joaquim Francisco de Paula, ocupa 0 posto de
almirante, 0 mais alto grau hierárquico, cabendo a direção
a Antonia Francisca de Paula, irmã do novo mestre. A partir
de então e até 15 de Novembro de 1979 esteve a frente da
Marujada, como seu mestre, Joaquim Francisco de Paula,
mais conhecido por Joaquim Polia ou simplesmente Po1ia-
alcunha que herdou de um irmão portador de doença de pele
denominada popularmente <<po1ia». Polia recebeu dc João
Teodoro, que era, como dissemos, filho de Jofio Caranguejo, a
incumbência dc, por sua morte, exercer a função de mestre.
Morto Manoel Teodoro, estava já marcado: Joaquim Polia
seria 0 seu substituto, saindo dessa forma das mãos dos
Caranguejo, e passando aos Labatut, o comando dos marujos.
Conta a tradição, e assim nos relatou dona Antonia, que
Polia se manteve refratário de inicio a fazer continuar saindo
a Marujada, até quando lhe sucedeu desmaiar, acometido de
mal súbito, no cemitério local onde trabalhava. Ao começar a
falar, o que se lhe ouvira era a afirmação de que a Marujada
deveria continuar saindo, frase esta que, segundo os que a
escutaram, fora dita na própria voz do já falecido Manoel
Teodoro. Diante disso e depois disso, Polia jamais vacilou:
conduziu a Marujada, fé-la desfilar religiosamente todos os
anos até o da sua morte, 1979.
Como convém aos chefes de dinastia, Polia preparara e
indicara o seu sucessor: José Carlos Francisco de Paula, mais
conhecido como Santo, um jovem seu neto. José Francisco
de Paula, filho de Polia e pai do novo mestre Santo, não foi,
porém, 0 escolhido. Dona Antonia tem mais uma vez a justificativa:
certa vez Polia repreendeu seu filho José, quando
este era calafate, e desde então ele nunca mais desfilou, nem
como calafate, nem como marujo ao tornar-se adulto. Assim
se explica porque 0 cetro passou dc avo a neto, estando ainda
vivo 0 filho.
Os membros da família dos Caranguejo atualmente pouco
se interessam pela Marujada, na afirmação de nossa informante.
De todos a que maiores ligações mantém é Joventina Vicente
de Deus, Caranguejo de descendência e mulher do atual
contra-mestre Antonio Ciriaco, mais conhecido por Leitoa
ou Bute.
A Marujada de Jacobina esta, pois, sob a <<dinastia>> dos
Labatut: um Labatut por mestre, uma Labatut como diretora.
Os marujos continuam saindo, a tradição continua mantida,
os santos da devoção dos negros não deixaram de ser homenageados
apesar das dificuldades que a Vida atual impõe a
cada um e ao grupo como um todo, dificuldades manifestadas
por dona Antonia ao dizer em tom de desabafo: <<Os marujos
nunca tiveram uma sede, nunca receberam auxilio. A (mica
coisa que receberam foi um fardamento completo. O marujo
é uma tradição, não é para acabar. Tem de passar de um
para outro». E isto é o que esperamos, para que ao ouvirmos
dos marujos, a cada ano, o seu
<<Arritiremos, arritiremos,
sem mais demora.
Todos contentes,
vamos embora»,
tenhamos a certeza de que, contentes também nos, voltaremos
a ouvi-los e vê-los nos anos que virão.
Referência:
CARDOSO, Suzana Alice Marcelino. A Marujada de Jacobina. Disponível em: <http://www.fl.ul.pt/unidades/centros/ctp/lusitana/lusitana5.htm>. Acesso em: 24 janeiro 2011.
Atualidade
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Quando vocês citam "Valquiria neta do Mestre..." Eu não sou neta,eu sou FILHA.
ResponderExcluirOlá Valquíria, quero lhe agradecer pela correção e dizer que é um prazer enorme uma pessoa da história citada está lendo esse trabalho que foi desenvolvido em sala de aula no ano de 2011 e, com o auxílio da Professora Joseane, trouxemos a público com o objetivo transpor da sala o debate ocorrido e informar aos leitores sobre o conteúdo, já que tivemos muitas dificuldades com material para dar suporte a este. Grande abraço da turma de Geografia. Ricardo Menezes
ExcluirBoa noite! Gostaria de saber qual o ano das duas primeiras imagens em preto e branco?
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